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  • Municipio de Elvas

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    segunda-feira


    JOÃO ELVAS

    Embora personagem ficticia de uma das principais novelas do nobel da literartura José Saramago, João Elvas essa carismática figura do memorial do convento deveria também ser referencida.Aqui vai uma nota breve de resumo desse magnifico livro onde se cita João Elvas. Ninguem como el nos tempos actuais projecta mais Elvas com o seu nome, como através de milhões de leitores que já leram em todo o mundo a sua obra literária.

    «Levar este pão à boca é gesto fácil, excelente de fazer se a fome o reclama, portanto alimento do corpo, benefício do lavrador, provavelmente maior benefício de alguns que entre a foice e os dentes souberam meter mãos de levar e trazer e bolsas de guardar, e esta é a regra. Não há em Portugal trigo que baste ao perpétuo apetite que os portugueses têm de pão, parece que não sabem comer outra coisa, por isso os estrangeiros que cá moram, doridos das nossas necessidades, que em maior volume frutificam que sementes de abóbora, mandam vir, das suas próprias e outras terras, frotas de cem navios carregados de cereal, como estes que entraram agora Tejo adentro, salvando à torre de Belém e mostrando ao governador dela os papéis do uso, e desta vez são mais de trinta mil moios de pão que vêm da Irlanda, e é a abundância tal, fome que finalmente deu em fartura, enquanto em fome se não tornar, que, achando-se cheias as tercenas e também já os armazéns particulares, andam por aí a alugar depósitos por todo o dinheiro, e poem escritos nas portas da cidade para que conste às pessoas que os tiverem para alugá-los, com que desta vez se vão arrepelar os que mandaram vir o trigo, obrigados pelo excesso a baixar-lhe o preço, tanto mais que se fala em próxima chegada de uma frota da Holanda carregada do mesmo género, mas desta virá a saber-se que a assaltou uma esquadra francesa quase na entrada da barra, e assim o preço, que ia baixar, não baixa, se for preciso deita-se fogo a um celeiro ou dois, mandando em seguida apregoar a falta que o trigo ardido já está fazendo, quando julgávamos que havia tanto e de sobra. São mistérios mercantis que os de fora ensinam e os de dentro vão aprendendo, embora estes sejam ordinariamente tão estúpidos, de mercadores falamos, que nunca mandam vir eles próprios as mercadorias das outras nações, antes se contentam com comprá-las aqui aos estrangeiros que se forram da nossa simplicidade e forram com ela os cofres, comprando a preços que nem sabemos e vendendo a outros que sabemos bem de mais, porque os pagamos com língua de palmo e a vida palmo a palmo.
    Porém, morando o riso tão perto da lágrima, o desafogo tão cerca da ânsia, o alívio tão vizinho do susto nisto se passando a vida das pessoas e das nações, conta João Elvas a Baltasar Sete-Sóis o formoso passo bélico de se ter armado a marinha de Lisboa, de Belém a Xabregas, por espaço de dois dias e duas noites, ao mesmo tempo que em terra tomavam posições de combate os terços e a cavalaria, porque correra a nova de que vinha uma armada francesa a conquistar-nos, hipótese em que qualquer fidalgo, ou plebeu qualquer, seria aqui outro Duarte Pacheco Pereira, e Lisboa uma nova praça de Diu, e afinal a armada invasora transformou-se em uma frota de bacalhau, que boa falta estava fazendo, como não tardou a ver-se pelo apetite. De riso murcho souberam os ministros a notícia, de riso amarelo largaram os soldados as armas e os cavalos, mas foram altas e estrepitosas as gargalhadas do vulgo, assim desforrado de não poucas vexações. Enfim, pior que a vergonha de esperar o francês e ver chegar o bacalhau, seria contar com o bacalhau e entrar o francês.
    Sete-Sóis concorda, mas imagina-se na pele dos soldados que esperavam a batalha, sabe como bate então o coracão, que irá ser de mim, se daqui a pouco ainda estarei vivo, apura-se um homem à altura da possível morte e depois vêm dizer-lhe que estão a descarregar fardos de bacalhau na Ribeira Nova, se os franceses vêm a saber do engano, ainda se rirão mais de nós. Vai Baltasar para ter outra vez saudades da guerra, mas lembra-se de Blimunda e lança-se a querer averiguar de que cor são os olhos dela, é uma guerra em que anda com a sua própria memória, que tanto lhe lembra uma cor como outra, nem os seus próprios olhos conseguem decidir que cor de olhos estão vendo quando os têm diante. Desta maneira se esqueceu das saudades que ia sentir, e responde a João Elvas, Devia era haver maneira certa de saber quem vem e o que traz ou quer, sabem-no as gaivotas que vão pousar nos mastros, e nós, a quem mais importaria, não sabemos, e o soldado velho disse, As gaivotas têm asas, também as têm os anjos, mas as gaivotas não falam, e de anjos nunca vi nenhum.
    Atravessava o Terreiro do Paço o padre Bartolomeu Lourenço, que vinha do palácio aonde fora por instância de Sete-Sóis, desejoso de que se apurasse se sim ou não haveria uma pensão de guerra, se tanto vale a simples mão esquerda, e quando Jão Elvas, que da vida de Baltasar não sabia tudo, viu aproximar-se o padre, disse em continuacão da conversa, Aquele que ali vem é o padre Bartolomeu Lourenço, a quem chamam o Voador, mas ao Voador não cresceram bastante as asas, e assim não poderemos ir espiar as frotas que querem entrar e as intenções ou negócios que trazem. Não pôde Sete-Sóis responder porque o padre, parando arredado, lhe fez sinal para que se aproximasse, assim ficando João Elvas na grande estupefaccão de ver o seu amigo bafejado pelos ares do Paço e da Igreja, e já pensando se disto poderia vir a tirar proveito um soldado vadio. E para que alguma coisa se fosse adiantando entretanto, estendeu a mão à esmola, primeiro a um fidalgo que de boa maré lha deu, depois, por distraccão, a um frade mendicante que passava exibindo uma imagem e oferecendo-a ao ósculo devoto, com o que João Elvas acabou por largar o que tinha recebido, Não me cair um raio em cima, será pecado praguejar, mas alivia muito.
    Disse o padre Bartolomeu Lourenço a Sete-Sóis, Falei com os desembargadores destas matérias, disseram-me que iam ponderar o teu caso, se vale a pena fazeres peticão, depois me darão uma resposta, E quando será isso, padre, quis Baltasar saber, ingénua curiosidade de quem acaba de chegar à corte e lhe ignora os usos, Não te sei dizer, mas, tardando, talvez eu possa dizer uma palavra a sua majestade, que me distingue com a sua estima e proteccão, Pode falar com el-rei, espantou-se Baltasar, e acrescentou, Pode falar a el-rei e conhecia a mãe de Blimunda, que foi condenada pela Inquisicão, que padre é este padre, palavras estas últimas que Sete-Sóis não terá dito em voz alta, só inquieto as pensou. Bartolomeu Lourenço não respondeu, apenas o olhou a direito, e assim ficaram parados, o padre um pouco mais baixo e parecendo mais novo, mas não, têm ambos a mesma idade, vinte e seis anos, como de Baltasar já sabíamos, porém são duas diferentes vidas, a de Sete-Sóis trabalho e guerra, uma acabada, outra que terá de recomeçar, a de Bartolomeu Lourenço, que no Brasil nasceu e novo veio pela primeira vez a Portugal, de tanto estudo e memória que, sendo moço de quinze anos, prometia, e muito fez do que prometeu, dizer de cor todo Virgílio, Horácio, Ovídio, Quinto Cúrcio, Suetónio, Mecenas e Séneca, para diante e para trás, ou donde lhe apontassem, e dar a definicão de todas as fábulas que se escreveram, e a que fim as fingiram os gentios gregos e romanos e também dizer que foram os autores de todos os livros de versos, antigos e modernos, até ao ano de mil e duzentos, e se alguém lhe dissesse uma põesia, logo responderia a propósito com dez versos seus ali mesmo compostos, e prometia também justificar e defender toda a filosofia e os pontos mais intricados dela, e explicar a parte de Aristóteles, ainda que extensa, com todos os seus embaraços, termos e meios termos, e responder a todas as dúvidas da Sagrada Escritura, tanto do Testamento Velho como do Novo, repetindo de cor, quer a fio corrido quer salteado, todos os Evangelhos dos quatro Evangelistas, para trás e para diante, e o mesmo das epístolas de S. Paulo e S. Jerónimo, e os anos de profeta a profeta e quantos de vida teve cada um deles, e o mesmo de todos os reis da Escritura, e o mesmo, para baixo e para cima, para a esquerda e para a direita, dos Livros dos Salmos, dos Cantares, do E^xodo e todos os Livros dos Reis e que não são canónicos os dois Livros dos Esdras, como afinal não parecem muito canónicos, diga-se aqui para nós e sem outras desconfianças, este sublime engenho, estas prendas e memória nascidas e criadas em terra de que só temos requerido o ouro e os diamantes, o tabaco e o açúcar, e as riquezas da floresta, e o mais que nela ainda virá a ser encontrado, terra doutro mundo, amanhã e pelos séculos que hão-de vir, sem contar com a evangelizacão dos tapuias, que só ela nos faria ganhar a eternidade.


    Saramago, José, Memorial do Convento, Romance, 20a edicão, Caminho - O Campo da Palavra, Lisboa 1990, pp. 59-63
     


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